Ano de Produção: 2004
Diretor: Richard Linklater
Roteiristas: Richard Linklater, Ethan Hawke e Julie Delpy
Atores Principais:
Ethan Hawke – Jesse
Julie Delpy – Celine
Um belo filme. Mesmo. Sem qualquer traço de sentimentalismo, nenhum vestígio de melodrama. Já vi “Antes do Amanhecer” e “Antes do Pôr-do-Sol” tantas vezes que me atrevo a dizer que conheço Jesse e Celine intimamente. A sinopse desta pequena obra de arte é simples: duas pessoas se reencontram nove anos depois da única noite que passaram juntos e conversam andando pelas ruas de Paris.
Na mesma onda de seu antecessor – a propósito, não recomendo esse filme sem ter assistido “Antes do Amanhecer” – o romance é altamente dialogado. Exatamente uma hora e dezessete minutos de conversa. Acho engraçado que muita gente torce o nariz para esse tipo de filme, mas adora ver malas e vagabas falando besteira 100% do tempo por meses em programas como “Big Brother”. Aqui, estamos longe do baixo nível do reality show. Além de tudo o que Jesse e Celine falam ser muito interessante, tanto no nível intelectual quanto no emocional, há também o que não é dito. Esse componente não expresso do diálogo representa uma camada extremamente importante na interação entre os personagens, pois marca a evolução do envolvimento romântico dos protagonistas.
No momento em que eles se reencontram, há naturalmente uma distância cautelosa entre eles. Jesse está na lendária livraria Shakespeare and Co. dando autógrafos para o lançamento de seu best-seller na França – exatamente sobre a noite que passou com Celine, andando pelas ruas de Viena. Celine está o observando à distância e Jesse discursa a respeito de seu próximo livro exaltadamente. No momento em que ele a percebe próximo a uma das estantes, seu abalo é notável. Quando consegue terminar a entrevista depois de muito gaguejar, Jesse respira fundo e vai até Celine. Apenas trocam oi e olá nervosamente. No começo da caminhada, eles imediatamente se perguntam se compareceram ao encontro marcado seis meses depois daquela noite em Viena. Celine não pôde ir porque sua avó tinha morrido no mesmo dia. Jesse confessa que estava lá, à sua espera. Esse embaraço inicial quebra o gelo de certa forma. Ela está derretida por ele ter cruzado o Atlântico para vê-la, apesar de ter sido obrigado a pedir dinheiro emprestado ao pai, e Jesse está aliviado pela justificativa inescapável do furo de Celine. A linguagem corporal ainda está tímida; Jesse é o único que, de vez em quando, toca-lhe o braço quando faz alguma brincadeira.
Um assunto bem atual no qual eles tocam com alguma profundidade é a dualidade experiência versus resultado. Uma fala específica do Ethan Hawke me chamou muito a atenção: “The fun is in the doing, not in getting what you want.” Complementa dizendo que, embora vivencie uma das maiores aspirações do Homem – sucesso profissional, casamento com uma mulher linda e um filho saudável – ele ainda não achou a felicidade. Tanto é que passou alguns meses num monastério, longe de toda a modernidade tecnológica e consumista. Celine conta que teve uma experiência semelhante quando viveu na Polônia comunista. Depois de duas semanas, não sentia mais falta de televisão ou de fazer compras, pois estava mais em contato consigo mesma. É interessante notar como nós temos a sensação de que vivemos num mundo falso, o qual parece que está sempre tentando nos “proteger” das experiências difíceis, porém significativas, da vida. Precisamos nos afastar dele para descobrir as nossas verdades e sentir a vida num nível mais profundo, além da superficialidade anestésica do consumo e do entretenimento. Uma verdade que ambos desvendaram é mencionada em certo momento: cumprir objetivos não traz felicidade. Quando se atinge uma meta, outra surge imediatamente. Desejos insatisfeitos estarão sempre presentes, por mais poder que você tenha para saciá-los. A busca por resultados, entremeada nas horas vagas pelo torpor trazido pelo prazer imediatista do shopping e do entretenimento, são o grande erro do estilo de vida moderno. As pessoas se esqueceram que as oportunidades de felicidade aparecem durante o processo de conquista e não na conquista em si.
Celine e Jesse fazem gradativamente a transição dos temas gerais – o meio ambiente também é um dos tópicos amplamente discutidos – em direção aos mais pessoais. O assunto “relacionamento” marca essa passagem. A falência do casamento de Jesse e a tepidez do envolvimento de Celine com seu namorado ausente trazem à tona e confirma o que ambos estavam pensando desde que se encontraram: a faísca ainda está lá. Jesse acaba confessando que escreveu seu livro como uma tentativa de encontrá-la. Celine, por sua vez, admite que sua vida amorosa virou de cabeça para baixo depois de ler seu romance. Em nenhum momento eles dizem isso, mas a verdade é que, após uma hora de conversa, eles estão novamente apaixonados um pelo outro, como se o tempo não tivesse passado. Não há necessidade de se dizer nada, o gestual nos conta tudo. São belíssimas as cenas em que Jesse e Celine, em momentos diferentes, enquanto o outro desabafa olhando pela janela do carro, hesitam em tocar-se carinhosamente, mas desistem na última hora. Outro exemplo do não dito se dá no magnífico desfecho do filme. A expressão facial de Jesse quando Celine lhe diz que ele vai perder seu vôo enquanto ela dança ao som de Nina Simone é suficiente para o espectador ter certeza de que ele não sairá daquele sofá nem sob ameaça. Ainda mais porque ela tinha acabado de cantar-lhe uma linda valsa, composta por ela, especialmente para ele.
Muito bonita essa idéia de invocação da presença do outro através da arte, como o aedo invocava a Musa antes de recitar a Ilíada. A arte como um grito de chamamento. Além disso, acho que a materialização de seus sentimentos em livro e música se configura como um dos motivos principais de sua continuidade por tanto tempo. Eles precisavam de algum instrumento para eternizar a memória daquela noite em Viena. Encontraram na arte.
O filme se passa obviamente antes do pôr-do-sol, durante o fim de tarde. A fotografia, portanto, é lindíssima, especialmente no que concerne à luz. Os atores, as ruas, as árvores, tudo está iluminado por uma cor dourada, cuja resplandecência provê ao filme uma qualidade onírica e idílica, apesar de se passar numa das maiores urbes do mundo. De fato, os personagens vivem uma dos nossos maiores sonhos – ter uma segunda chance de retomar uma paixão não consumada.
No entanto, a maior qualidade técnica da película é o seu roteiro, absolutamente sem costuras e artificialismos. A conversa acontece em tempo real, de maneira que o filme poderia ser facilmente um documentário. A gradação presente no diálogo, do menos para o mais íntimo, é perfeita. É impressionante como uma hora e dezessete minutos de filme foram suficientes para desenvolver personagens tão complexos e, por isso, autênticos. Na minha cabeça, Jesse e Celine são reais; existem independentemente de Ethan Hawke e Julie Delpy. Dentre todos na História do Cinema, eles são possivelmente os personagens com os quais eu mais gostaria de ter uma conversa. Sou fã deles.
Menção: F
Link no imdb.
O teasing sem follow up tbm pode sim ser fantástico. Um filme em que 100% do tempo há diálogo pode sim ser interessante. Acho a cena final, no apto da Celine, impagável: a expressão facial do Ethan Hawke, que vc bem salientou, é mesmo sensacional. Como dizer tanto sem dizer nada? Vou assistir de novo só para anotar os meus trechos de diálogo preferidos! Muito obrigada pela crítica, Diego! Adorei, adorei.
ResponderExcluirObrigado! Quando quiser críticas de outros filmes, é só pedir.
ResponderExcluirE, realmente, deveria haver mais filmes-diálogo. Preciso ver mais filmes do Eric Rohmer, a grande inspiração do Richard Linklater.
Acho muito pertinente a teoria sobre a qual Hawke comenta de que as pessoas não mudam realmente. Elas se adaptam a novas situações para então voltarem a ser exatamente como antes. Faz sentido, não? Outro comentário que adoro é quando ele fala da falência do seu casamento e diz que tem a impressão de que se alguém encostar nele, ele irá se dissolver em milhares de moléculas.
ResponderExcluirAssim como vc, acho que esses dois personagens são tão verossímeis que parece que os conhecemos na vida real. É uma situação tão surreal que eu chego a me satisfazer pessoalmente com a segunda chance que eles tiveram. Funciona como se fosse um remédio para as segundas chances que eu mesma nunca tive na vida.
Concordo plenamente com essa teoria do Ethan Hawke. Faz sim todo sentido.
ResponderExcluirCom relação às milhares de moléculas, deixo para as mulheres se derreterem. Confesso que Ethan não me faz suspirar. :)
Mais do que ter uma segunda chance, acho que a fantasia maior seria voltar no tempo e não cometer os mesmos erros.
Hawke não me faz suspirar mesmo. Mas sou muito fã dos diálogos dos dois, hahahaha. Dá até para dissociar toda a envolvente conversa da figura física deles!
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